Pages

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

MEMORIES (1995)

Pra quem realmente conhece cinema e desenhos animados, o nome Katsuhiro Otomo é lembrado especialmente devido à sua importância para uma crucial mudança no panorama mundial referente às formas de arte mencionadas acima.
Afinal, o seu clássico cyberpunk Akira (1988) foi um dos principais responsáveis pela visibilidade e aceitação que os animes japoneses adquiriram no Ocidente, nas últimas décadas.
Porém, esse seu outro projeto não foi tão alardeado assim.
Dividido em três episódios, cada um deles dirigido por um cineasta diferente, “Memories” é uma adaptação de algumas histórias Sci-Fi de Otomo, que produziu sua adaptação para o cinema e selecionou os responsáveis pela direção de cada parte do longa-metragem.
A sensação de unidade fica por conta das temáticas recorrentes da obra do consagrado autor de HQs e diretor.
Sendo assim, as clássicas situações de conflito entre homem X máquina estão presentes, além de um humor negro particular e a capacidade de inserir em tudo isso um viés pop que não dilui a ousadia da mensagem.
E se em Akira o roteiro nos conduzia em uma visão distópica de um futuro que rememorava os anos 60, em “Memories” somos transportados para a década de 80 na perspectiva de ficção-científica do autor.
E dessa vez, apesar de a proposta ser bastante diferente de seu trabalho mais famoso, o retrato não é menos visceral.


De início, Magnetic Rose, com a adaptação do roteiro feita por Satoshi Kon, e direção de Koji Morimoto, é o olhar pessimista a respeito do sonho de conquista do espaço almejado pelas potências antagônicas durante a Guerra Fria. Jamais os líderes americanos ou soviéticos sonhariam em ver seu investimento resultando em um bando de catadores de lixo espacial.
Transitando pelo gênero de terror, possui ainda assim uma construção narrativa de notória intensidade e foco no drama dos personagens que o mantém livre de comparação com as infames tentativas hollywoodianas de realizar algo que preste neste gênero.



A seguir, Stink Bomb, do diretor Tensai Okamura, é o ponto de equilíbrio entre tensão e humor no longa-metragem.
Mas o ar cômico não deixa de funcionar em uma demonstração de humor negro a princípio inusitada, em se tratando de um enredo que retoma o medo de um ataque americano devastador novamente em solo japonês. As caricaturas dos militares estadunidenses, e o tom de exagero na situação desencadeada são os pontos altos nesse conto de horror e ação que prepara o espectador para o último episódio.



Em Cannon Fodder, o desfecho do filme, dirigido pelo próprio Katsuhiro Otomo, as coisas deixam de lado a sugestão e partem para o discurso de crítica direta.
Referências existem aos montes em tela, porém quem as deixar passar ainda terá muito no que refletir diante do cotidiano da cidade cujos habitantes existem simplesmente em função da produção de material bélico visando munir os incontáveis canhões apontados para um inimigo que ninguém vê ou sabe quem é.
Trata-se da corrida armamentista em seu estado extremo e suas consequências, desde o quadro de miséria e alienação da população até à contínua lavagem cerebral pela qual passa a população para ser mantida incapaz de questionar os motivos do conflito.
Optando por uma arte menos convencional, e sendo contado em plano sequência, Cannon Fodder é o mais rico em possibilidades e o mais poderoso em sua abordagem.

As perspectivas dos três diretores a respeito de períodos históricos de grande influência na sétima arte tornaram possível ao filme esquivar-se dos lugares comuns ao tratar do tema, obtendo uma profundidade que rivaliza com produções em live-action sem ficar devendo em nada no que se refere ao caráter ácido esperado de um trabalho deste teor.
E apesar de não ter obtido tamanha repercussão se compararmos com seu filme de maior sucesso, é ainda assim notório que Otomo soube moldar um material coeso e possuidor de um inegável potencial Cult.


A singular obra do autor representa assim mais do que uma forma de revisitar os erros do passado, mas também, e principalmente, uma maneira de obter um alcance maior do conteúdo questionador de seu roteiro, que revive a memória coletiva do povo japonês acerca do saldo abominável da Segunda Guerra para o seu país, e atualiza a discussão para as próximas gerações, responsáveis por repetir tais fatos ou impedi-los de novamente acontecer.
Memories é uma obra que consegue ser atemporal em sua representação da realidade, e que não limita-se ao que o público assiste ao longo de sua metragem, afinal, ao fim da sessão haverá muito a discutir, e novos significados surgirão cada vez que reassistir o filme.


Quanto vale: um ingresso e meio.

Memories
(Memories)

Direção: Koji Morimoto, Tensai Okamura, Katsuhiro Otomo

Duração: 113 minutos

Ano de produção: 1995
Gênero: Drama / Ficção Científica / Terror / Ação

5 comentários:

Anônimo disse...

Sou fã incondicional de Akira e pelo jeito esse "Memories" possui tudo o que um admirador do gênero procura. Parabéns pelo texto e valeu pela dica.

Guilherme Hollweg disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Guilherme Hollweg disse...

Muito bom o texto e a análise da obra.

Curti todos os curtas, mas principalmente o terceiro deles, Cannon Fodder, até porque o mesmo retrata a tensão da II Guerra Mundial, mas creio que não seja a Corrida Armamentista, como tu disseste no post.

Até porque a Corrida Armamentista foi reflexo da Guerra Fria, período compreendido pós II Guerra Mundial, que se extendeu até meados das batalhas pelas ilhas Malvinas em 1982...

Mas quando tu se referiu ao povo japonês alienado às fábricas de produção bélica, e a questão da manipulação política da população, censurando programas de televisão, e os incentivando a lutar contra inimigos que realmente, ninguém compreendia quem fosse, concordo, o autor fez isto de maneira genial.

Na minha opinião, a cidade retratada era Nagasaki, responsável pela maior quantidade de produção de armas para suprir as necessidades japonesas da II Guerra Mundial. Até porque um dos principais trunfos japoneses da época, era a produção dos canhões com grandes alcances, retratados bastante no filme.

Creio que os flashs de luz que encerram o filme, sejam os flashs da explosão da bomba atômica norte-americana que destruiu as cidades de Iroshima e Nagasaki, e assim, pôs fim a II Guerra Mundial.

Marcel Ibaldo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marcel Ibaldo disse...

Interessante esse ponto de vista e bastante válido, apenas ressaltando que uma obra diferenciada que nem essa é catalisador para o debate, algo que fortalece o fato de ser um grande filme.

Valeu pelos comentários.